Há momentos na história de um país em que a Justiça deixa de ser apenas uma instituição e passa a desempenhar o papel de personagem central, não pela nobreza de sua missão, mas pelo peso de sua intervenção. Em muitos momentos, esse protagonismo nasce da necessidade de proteger a democracia. Em outros, nasce do desejo de controlá-la. No Brasil de hoje, críticos apontam que essa linha se tornou perigosamente tênue.
Por Paulinho Cunha / Crédito Imagem: André Borges/EFE - Foto Divulgação
Entre decisões polêmicas, investigações concentradas e medidas cautelares incomuns, surge a percepção crescente, incômoda e inescapável de que um ministro da Suprema Corte não apenas participa do enredo político, mas assume o protagonismo, escreve o roteiro, escolhe o antagonista e, antes mesmo que o país compreenda o ato em cena, adianta o desfecho. Para muitos analistas, Alexandre de Moraes deixou de ser observador e tornou-se motor da narrativa institucional mais controversa da história recente.
A construção de um pivô político
A série de decisões envolvendo Jair Bolsonaro é apontada por seus críticos como um eixo central dessa nova lógica de poder: uma sequência que, vista em conjunto, forma um mosaico que ultrapassa a esfera jurídica e se aproxima da estratégia política. Não é preciso ser partidário para perceber que há um padrão. O que preocupa não é a investigação em si, é seu caráter excepcional, sua intensidade, sua repetição e sua seletividade.
Medidas raras tornam-se comuns. Restrições inéditas passam a ser rotina. A proporcionalidade perde referências. E, mais grave: a colegialidade, pedra fundamental de qualquer Corte Suprema torna-se coadjuvante de decisões individuais que moldam a paisagem política.
Analistas afirmam que, quando investigações simultâneas, prisões preventivas prolongadas e decisões monocráticas se acumulam contra uma única figura pública, é impossível não questionar os limites entre Justiça e protagonismo.
O ponto de ruptura: 8 de janeiro e o abandono da individualidade
Mas nada escancarou tanto essa mudança quanto os acontecimentos de 8 de janeiro. A depredação dos prédios da República foi um ato criminoso, reprovável e merecedor de punição severa. Isso não está em discussão. O que se discute é o que veio depois: o maior processo de punição coletiva desde o período militar, conduzido sob a justificativa de preservar a ordem, mas marcado segundo críticos, pela supressão da individualidade jurídica.
Foram centenas de prisões realizadas sem distinção entre vândalos e manifestantes pacíficos, idosos doentes, mães com crianças, cidadãos sem antecedentes criminais. Relatos indicaram semanas sem audiência, ausência de assistência mínima, detentos sem qualquer indício de participação em crimes violentos,mas tratados como terroristas. Entidades independentes denunciaram apreensão irregular de adolescentes. Famílias apontaram longos períodos sem informações, sem acesso adequado à defesa, sem critérios claros de avaliação individual.
Casos mais graves envolvem mortes ocorridas enquanto os detidos aguardavam julgamento, sem sentença definitiva, sem direito sequer ao encerramento básico de um processo. São vidas ceifadas não pela culpa comprovada, mas pela lentidão (proposital) institucional o que, para muitos especialistas, fere frontalmente princípios elementares do Direito.
Até hoje, há pessoas mantidas em prisão preventiva há anos, sem julgamento concluído. E é esse conjunto que desperta a preocupação: quando a Justiça abandona a individualização e adota a punição em massa, ela atravessa a linha que separa o Estado de Direito do Estado de Exceção.
O desequilíbrio entre poderes e o silêncio conveniente
Num país de poderes equilibrados, uma única figura não deveria concentrar, ao mesmo tempo, funções essenciais: investigar, acusar, determinar medidas cautelares e julgar. No entanto, segundo críticos, é isso que se vê no ambiente pós-8 de janeiro. Um ministro opera não apenas como membro da Corte, mas como centro operacional de toda uma frente jurídica e política.
O Executivo observa em silêncio.
O Legislativo hesita em cobrar freios.
A imprensa, em grande parte, abandona a vigilância crítica e adota a narrativa governamental como única moldura possível.
Nesse vácuo, cria-se um terreno fértil para excessos onde Justiça adota pesos e medidas distintos conforme o personagem em cena.
Enquanto figuras envolvidas nos maiores escândalos de corrupção da história retornam ao poder ou veem processos ruírem, milhares de cidadãos comuns enfrentam a dureza de penas e medidas extremas por atos de presença, omissão ou associação.
Nesse contraste brutal, nasce a sensação amplamente difundida de que a Justiça se tornou seletiva: dura com uns, indulgente com outros; veloz com certos nomes, eternamente lenta com outros tantos.
A democracia intimidada: liberdade com condicionantes
A maior crítica que pesa hoje sobre o sistema não recai sobre a punição aos culpados, mas sobre o clima de intimidação que se instalou entre cidadãos, jornalistas, formadores de opinião e opositores políticos.
Múltiplos analistas apontam que:
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jornalistas independentes enfrentam processos e censuras,
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influenciadores recebem multas consideradas desproporcionais,
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usuários comuns são investigados por opiniões publicadas na internet,
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parlamentares têm sua atuação limitada por decisões judiciais,
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veículos de imprensa alternativos recebem determinações de bloqueio e retirada de conteúdo.
É a formação de um ambiente onde a crítica ao poder, qualquer poder passa a ser regulada pela interpretação subjetiva de uma autoridade. Quando ideias se tornam alvo, o debate morre. Quando o debate morre, a democracia adoece.
8 de janeiro como ferida usada politicamente
O país precisa punir responsáveis com rigor, mas com justiça e individualização. No entanto, segundo diversos analistas, o que se vê é o uso contínuo desse episódio como justificativa para manter viva uma atmosfera de exceção. As prisões preventivas prolongadas, o ritmo lento de julgamentos e a ausência de revisão ampla de casos reforçam a percepção de que o 8 de janeiro se tornou não apenas um capítulo trágico, mas um instrumento político.
O papel do Judiciário deveria ser encerrar a ferida.
O que se percebe, porém, é que ela permanece aberta por opção ou conveniência institucional.
Perguntas que ecoam no país inteiro
Por que decisões tão severas, tão longas, tão concentradas?
Por que os princípios básicos da proporcionalidade, ampla defesa, individualização, parecem tão frágeis?
Por que um ex-presidente recebe tratamento tão distinto?
E, sobretudo: quem vigia quem vigia?
Essas perguntas não são radicais.
São democráticas.
São necessárias.
A escalada: decisões recentes e o agravamento do cenário
A decisão de Alexandre de Moraes de decretar a prisão preventiva de Jair Bolsonaro na madrugada do dia 22 escancarou um padrão de autoritarismo judicial. Sob o pretexto de “garantia da ordem pública”, o ministro transformou uma convocação para uma vigília feita por Flávio Bolsonaro, em justificativa para uma medida drástica e desproporcional, ignorando o caráter pacífico e religioso da manifestação. Moraes converteu uma falha técnica na tornozeleira eletrônica de Bolsonaro, algo comum e já registrado dezenas de vezes com outros monitorados em suposta “tentativa de fuga”.
Mesmo diante de indícios claros de pane no equipamento, a decisão veio antes do amanhecer, recheada de expressões dramáticas como “gravíssimo risco”, “obstrução ostensiva” e “ameaça à investigação”.
Para qualquer observador atento, parece que a preocupação não é com os fatos, mas com a preservação de uma narrativa construída pelo próprio STF.
Detalhes banais foram transformados em “provas” de uma conspiração internacional imaginária: a proximidade do condomínio com embaixadas, a vigília convocada por Flávio Bolsonaro, e até viagens de aliados ao exterior. Um raciocínio que mina a confiança na seriedade do processo.
O episódio revela:
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um viés político explícito,
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um STF que extrapola sua função constitucional,
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e um relator que atua simultaneamente como censor, repressão e polícia.
Nesse modelo, o Judiciário deixa de arbitrar conflitos e passa a silenciar quem discorda.
O risco que ronda todas as democracias
Nenhuma nação está imune a abusos.
Nenhuma democracia é eterna por decreto.
Nenhum poder, por mais legítimo que seja, deve existir sem freios.
O que se vê no Brasil, segundo seus críticos mais atentos, é o avanço de um modelo de Justiça que parece esquecer sua missão fundamental: proteger o indivíduo contra o arbítrio. Quando a Justiça assume uma forma política, ela perde sua essência. Quando ela escolhe alvos, não causas, ela deixa de ser Justiça para se tornar instrumento de persuasão.
E é por isso que a pergunta final não é sobre Bolsonaro, nem sobre Moraes, nem sobre direita ou esquerda.
A verdadeira pergunta é:
Se podem fazer tudo isso com um ex-presidente, o que podem fazer com você?
Democracias não morrem no clarão.
Elas morrem na penumbra.
Morrem quando o medo substitui o debate.
Morrem quando o silêncio ocupa o lugar da crítica.
Morrem quando a Justiça deixa de ser balança, e vira espada nas mãos de um só.
E o Brasil merece algo muito maior do que isso e a verdade é simples: só um ingênuo acredita que Bolsonaro violou deliberadamente a tornozeleira.

